terça-feira, 19 de maio de 2020

São Paulo, Santo André, 23 de Novembro de 1944

Versos para você

Segue-me. A estrada é plana e a tarde agora
Doura a alta cabeleira das ramadas
Enquanto o sol é uma águia que estertora
Fechando e abrindo as asas fatigadas...
Vamos antes que a noite com carinho
Encha no outono, o céu de primavera...
Escura, além a margem do caminho,
Há um banco que entre sombra nos espera...
Quero dizer-te assim, como se ungisse
Teus ouvidos com poemas imortais,
As frases que ninguém jamais te disse
E que, só de meus lábios, ouvirás...
Frases
Que hão de acordar clarões adormecidos
Dentro de teu olhar!
E sentirás na angústia dos sentidos
O sublime desejo de pecar...
Acompanha-me...A estrada se compara
Ao caminho de todas as venturas!
Dançam folhas...As folhas são criaturas
Que o vento, caprichoso, une e separa...
Vem! Que em teus lábios, meu amor recolha
O muito de minh'almaque hoje dou...
Porque amanhã seremos duas folhas!
Que o vento do destino separou!

s.d

Chegamos finalmente a um terreno plano com uma enorme casa no centro, dos lados três balanças, no fundo um salão que dá para o Rio Tietê e muitas frutas ao redor. Era ali o falado sítio.
Trocamos de roupa e fomos até a piscina. Muitos rapazes que nos foram apresentados banhavam-se.
Passei os três dias pode-se dizer num paraíso pois eu me diverti bastante.
De manhã levantava para tomar sol e dali meia hora café. Mas que apetite! Parecíamos gentes esfomeados, pois daquele jeito que corríamos, trincávamos, de fome que quando chegava a hora do almoço estávamos com o estômago nas costas.
Durante as três noites houve baile e brincadeiras muito interessante, excluindo uma que eu não apreciei muito, mas que finalmente acabei entrando no meio.
Mais tarde alguém falou de uma certa bica existente por ali e deixou-nos interessada, pois logo depois do almoço, eu, a Edna, Diná e uma outra fomos até lá. Ficava além da piscina por um atalho pequeno onde tinha que descer por uma escada comprida no meio de grandes arvoredos. Mas que coisa maravilhosa! Não sei porque até pensei que aquilo só poderia ser feito por uma mão Divina pois por mais que eu quisesse descrever não poderia, pois só a um poeta caberia esse privilégio.
Na tarde do dia seguinte como os rapazes insistiam para que fossemos ver uma certa pedra descoberta por eles, não fizemos de rogada e fomos, onde no caminho pegamos um pouco de laranja para levar. A estrada era um tanto escura, pois naquela tarde não fazia sol, até ameaçava uma tempestade, e o formato de um túnel de forma que precisamos entrar agachadas, onde mais adiante avistamos as duas pedras. Lá em baixo um riacho meio oculto, emprestava mais beleza àquele recanto.

12 de Junho de 1944

Hoje num dia calma e límpido, fizemos os nossos preparativos para a mudança. Somente duas viagens de carroça e eis-nos mudados.
A casa é pequenina mais em compensação pode-se dizer que é um tanto bonita ao seu redor. Creio mesmo que por um espaço de tempo não nos faltará limão.
A noite pareceu-me triste, pois acostumada a onde ouviam muito barulho de crianças, aqui somente cinco pessoas.
Fiz mil planos para plantar, mas vejo que a terra é bem dura, pois o pedacinho que quis carpir até me fez um pouco de calo.
A tarde a Ignez trouxe um monte de ervilha que está plantada além do triozinho.

Festas de Junho

Era assim o mês de junho, onde as fogueiras eram acesas no dia de S. Pedro ou no do S. João. E a noite de São Pedro chegara talvez impaciente de o esperar.
Num céu imensamente azul cinza os pequeninos balões começavam a surgir. Primeiro um e depois aos milhares, onde o céu aberto de estrelas parecia misturar aos pequeninos pontos avermelhados.
Fogueiras, batata-doce, bombinhas, tudo isso desfilavam aos meus olhos apesar de que quando saia a rua vivia com medo de que algum garoto endiabrado chegasse um desses fogos que era o meu terror, aos meus pés. Mas quando chegava a noite então já sem receio ia para a fogueira que as criançadas faziam a beira do caminho. Um cheiro forte de batata-doce assada e de quentão circundavam ao nosso redor. E assim as horas iam passando quando alguém se lembrava que já era tarde e hora de dormir.
E quando chegava o dia seguinte ainda restava a braza da noite anterior.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

17 de fevereiro de 1947

O dia estava meio chuvoso quando saímos. Pelo caminho íamos cantando velhas modas de carnaval e quando alguém dizia uma piada era só risada. Apesar de não ser uma coisa bonita, grandes quantidades de carros desfilavam na Avenida São João!
Os guardas postos em certos trechos controlava o tráfego. Fomos até a Freguesia do Ó para buscar minha roupa e como não havia ninguém, entramos pelo portão que dá para a oficina. Foi construída recentemente, de forma que precisamos ter cuidado com os tijolos espalhados pelo chão. O céu estava carregado e um vento gelado batia no rosto. Ali tudo era silêncio a não ser que numa poça d'água os sapos pulavam de cá para lá.
As janelas são grandes que dá para uma pessoa entrar. Como tínhamos ido até lá e para não perder a viagem, resolvemos que o Paulo entraria pela mesma. Pegamos alguma coisa, pois o guarda roupa estava fechado a chave.
Na volta fomos jantar num restaurante perto da casa da irmã de Lina. Éramos para ir para lá mas como tínhamos ficado de encontrar com o Barbimo as 7 não deu tempo. Fomos ao cinema assistir Sangue e Areia e na saída como não saímos todos juntos, chegamos primeiro ao caminhão.
Na rua quase não se via fantasia. Os que andavam por ali na rua estavam voltando do cinema. Chegamos em casa as 3 horas da madrugada.

s.d., Nenny

Uma arte e bem difícil e bem útil é a Arte de Dizer "Não".
Clement Marot, que foi o último desses "bons becs en parler direct"[bons bicos em falar diretamente] "que espiritualizaram o Doce Paig da França nas vésperas do Renascimento; o gentil Marot pos um dia no simples título de uma sua pequena peça toda uma bem espremida síntese dessa complicada sabedoria. Imitando ainda uma vez o seu tão imitado Uvillon, chamou assim o favorito palaciano de Margarida de Navarra a sua esperta "badinage" [brincadeira] "Um doux nenny avec un doux sourire" [um doce nãozinho com um doce sorriso]
"Nenny", um "não" pequenino...
Que pena não existir na nossa rude língua peninsular e navegadora ____ fala de marujos livres, que sabe e que surgem em mar-alto - um, como esse, familiar amortecedor da áspera negativa!
"Não"...isso será sempre brusco, seco e agressivo, por mais e melhor que a gente avance demoradamente, separando-as, as duas vogais do ditongo nasal "Não"... Isso terá sempre toda a rapidez aguda, apunhalante dos monossílabos. É preciso limar, lixar, polir essa aresta maldosa. Mas como?
Abrandando-a embalando-a com as duas sílabas fofas, algodoadas dos diminutivos: "Nãozinho"?
Nada disso. No título delicioso e delicado de Marot, fiquemos só com a segunda, sempre praticável metade "un doux sourire"
Você, por exemplo, pequena leitora casual, aprenda o "doce sorriso" de Marot. E se as teimosas interrogações da vida insistirem, e for mesmo preciso dizer "Não" faça sair dos seus lábios apenas a mais linda forma do silêncio: um beijo.
Depois diga simplesmente "Não". E passe de novo o "batom" morno e oleoso. Ficará vestido de púrpura - com a majestade de púrpura que faz obedecer e admirar porque da soberania e beleza - a pequena palavra plebéia. G. de M.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

São Paulo, 3 de junho de 1944

Quando lembrei que hoje era sábado não soube esconder o meu espanto pois estamos aqui num lugar que cada qual procura ver o seu serviço e não como São Paulo que todos esperam ansiosamente o domingo, uns para is a Santos, outros para irem ao cinema, pois eu neste dia nem sequer me lembrava e eis a razão do meu espanto. A noite, eu e outra pessoas reunidas em volta da mesa ouvíamos a vitrola donde de vez em quando uns discos deixava lembrar com certa saudades do tempo da Onça. (querendo, querendo desafiar).
Lá fora como querendo desafiar a natureza a lua envolve no seu manto prateado. O céu límpido, onde milhões de estrelas brilham parece encerrar mistério.
Num riacho o murmurar das águas corta a quietude da noite. Uma leve brisa passa pela mata e os galhos de leve se agitam.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

vovó yó.

Fevereiro de 1944.

O carnaval está perto. É o que se ouve de vez em quando da boca do povo.
Não sei porque este ano não tenho grande interesse como nos anos anteriores. Mas a ideia de que irei passar os três dias no sítio me anima um pouco pois até ontem quando falávamos da nossa ida ficamos influenciados que tive desejo de fazer um esforço.
Sábado finamente chegara e contente preparamos tudo, mais por triste fatalidade uma chuva forte impediu essa viagem, aliás uma viagem bem curta. Adiamos nossa ida para domingo que levantamos cedo. No bonde pouca gente. A minha frente dois rapazes sentados com jeito de pouca animação. Chegamos a Penha e a feira de lá um tanto barulhenta onde se via mais malandros. Uma fila um tanto comprida e finalmente o ônibus chegou. Sentamos separadas por falta de lugar. A cada instante que o ônibus corria lindas paisagens ficavam atrás. Eu já sentia o cheiro forte da mata. Tive desejo de fechar os olhos e ficar absorta por um momento. Quatro homens conversavam animadamente sentado atrás. O assunto referia-se ao cinema, onde as vezes umas piadas um tanto interessante deixava no ar uma forte gargalhada. A uma certa altura, não podendo me conter ri com gosto, para mias logo ficar séria e olhar novamente a paisagem. Chegamos finalmente a São Miguel, uma cidade pequena onde se via homens sentados em frente de suas casas, talvez um costume desse lugar. O que não posso esquecer foi a longa caminhada, pois não fomos de mão vazia. Durante o percurso eu não perdia um só detalhe. Como era lindo! Lugar de muitos morros e pedras onde de vez em quando, aqui ou ali milhos plantados para dar mais adiante com pedras posta pela mão da natureza.