terça-feira, 20 de novembro de 2018

final de ano.

as vitrines brilhantes e o chão encerado. eu não fiz as fotos que tinha pensado em 2003, quando trabalhava naquela loja de produtos naturais. o registro dos trabalhadores na saída de emergência, fumando, comendo, perto dos elevadores de carga se perdeu na trajetória entre os 18 e os 33.

casais e o ciclo natural da vida: me pareceu por um momento que eu encaretava, que tinha virado uma burguesa em que a preocupação maior estaria em combinar o estofado com o jogo de jantar. ou pior, na espera do marido, o tédio diante daquilo que viria em frente.

se tem uma coisa que é o mais cruel diante essa conjuntura política filha da puta, é a ideia de que o que vinha fazendo agora perdesse sentido. e a ansiedade ficasse entre os formulários de um sistema que é equivalente a indústria armamentista.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

love letter

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos, in "Poemas"

segunda-feira, 23 de julho de 2018

from Megane, 2007 (again)

I know what Freedom is.
Follow the path straight ahead.
Keep out of the ocean deeps
I have left such words behind me
The Moon shines upon all paths
like Fish who swim like Diamonds in the Dark
Called a human being by chance – so here I am
What did I have to fear?
Against what was I struggling?
It’s time for me to lay down my heavy load.
Give me even more strength,
Strength to love.
I know what Freedom is.
I know what Freedom is.

terça-feira, 12 de junho de 2018

O museu do silêncio, de Yoko Ogawa

"O que eu quero são coisas que guardam, da forma mais vívida e fiel possível, a prova de que aqueles corpos realmente existiram, entende? Algo sem o que os anos acumulados ao longo da vida desmoronariam desde a base, algo que possa eternamente impedir que a morte seja completa. Não são lembrancinhas sentimentais, não tem nada a ver com isso." (p. 45)

"Meu irmão é do tipo de pessoa que não dá muita importância para coisas e posses. Ele não se apega. Talvez por conhecer bem como toda a matéria é composta. Mesmo a pedra mais preciosa é só uma combinação de átomos, e mesmo no animal mais reles e nojento as células se combinam em arranjos lindos. A aparência das coisas é só uma farsa. Por isso ele dá mais valor ao mundo que os olhos não enxergam. Ele sempre dizia que "o primeiro passo da observação é ter consciência de quão rudimentar é a precisão do olho humano". (p. 89)

"- Deve ser porque os meus ouvidos estão cobertos pelas ataduras. Então escuto os sons que vêm de dentro de mim. Minha mãe sempre diz que se a gente quiser saber o futuro, é só tapar os ouvidos. Assim dá pra ouvir a voz dentro da gente lá longe, no futuro." (p. 106)

"Dentro dela havia um pente, uma colher, um anzol e uma bola de gude. Isso era tudo. Aparência, comida, trabalho e memória. Era o menor museu possível representando a vida daquele homem." (p. 208)

segunda-feira, 23 de abril de 2018

escorpião, signo fixo

“Dentro de mim mora um grito. De noite, ele sai com suas garras, à caça de algo pra amar”. (Sylvia Plath)

domingo, 15 de abril de 2018

Instruções para esquivar o mau tempo, de Paco Urondo

Em primeiro lugar, não se desespere e em caso de agitação não siga as regras que o furacão quererá lhe impor.
Refugie-se em casa e feche as trancas quando todos os seus estiverem a salvo.
Compartilhe o mate e a conversa com os companheiros, os beijos furtivos e as noites clandestinas com quem lhe assegure ternura.
Não deixe que a estupidez se imponha.
Defenda-se.
Contra a estética, ética.
Esteja sempre atento.
Não lhes bastará empobrecê-lo, e quererão subjugá-lo com sua própria tristeza.
Ria ostensivamente.
Tire sarro: a direita é mal comida.
Será imprescindível jantar juntos a cada dia até que a tormenta passe.
São coisas simples, mas nem por isso menos eficazes.
Diga para o lado bom dia, por favor e obrigado.
E tomar no cu quando o solicitem de cima.
Dê tudo o que tiver, mas nunca sozinho.
Eles sabem como emboscá-lo na solidão desprevenida de uma tarde.
Lembre que os artistas serão sempre nossos.
E o esquecimento será feroz com o bando de impostores que os acompanha.
Tudo vai ficar bem se você me ouvir.
Sobreviveremos novamente, estamos maduros.
Cuidemos dos garotos, que eles quererão podar.
Só é preciso se munir bem e não amesquinhar amabilidades.
Devemos ter à mão os poemas indispensáveis, o vinho tinto e o violão.
Sorrir aos nossos pais como vacina contra a angústia diária.
Ser piedosos com os amigos.
Não confundir os ingênuos com os traidores.
E, mesmo com estes, ter o perdão fácil quando voltarem com as ilusões acabadas.
Aqui ninguém sobra.
E, isto sim, ser perseverantes e tenazes, escrever religiosamente todos os dias, todas as tardes, todas as noites.
Ainda sustentados em teimosias se a fé desmoronar.
Nisso, não haverá trégua para ninguém.
A poesia dói nesses filhos da puta.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Gabriel García Márquez

From The Paris Review Interviews, Gabriel García Márquez, The Art of Fiction No. 69

"All human beings have three lives: public, private, and secret.”

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

O inóspito: o estrangeiro e o inimigo em nosso espaço

'Essa palavra merece, precisa de explicação. Então começo por aí. Como Flusser tanto gostava, deve-se resgatar a etimologia, a história das palavras, sua arqueologia. Vivemos na era em que as ciências arqueológicas começam a tomar o espaço das ciências normativas. A palavra inóspito vem do latim hospitalitas e que significa “condição do estrangeiro”. Ou, então, do mesmo núcleo de significado, fazem parte outras palavras em latim, como hospitium, que significava “aposento” ou “hospitalidade”. Ou, então, hospes, hospitis, que significava “hóspede” ou “estrangeiro” ou “viajante”. E ainda hostis, “estrangeiro”, “forasteiro”, “inimigo”. Então a palavra portuguesa inóspito, reúne todos esse sentidos, o sentido de estrangeiro, o sentido de hospitalidade, de hospitalidade ao estrangeiro, o sentido do viajante, (o nômade, tão importante para Flusser), e o sentido do inimigo. Segundo pesquisas linguísticas, a palavra hostis vem do indo-europeu ghosti, que significava, em indo-europeu, “inimigo” e “estrangeiro”. Então, entra em pano de frente a figura do “inimigo”, e daí vem o sentido de hostil em português. Então hostilidade procede da mesma raiz de inóspito e de hospitalidade. E por aí temos um bom número de palavras que nascem da mesma raiz tais como hospital e hospício." Norval Baitello Junior. Disponível em: http://www.flusserstudies.net/sites/www.flusserstudies.net/files/media/attachments/baitello-o-inospito.pdf. Acesso em 7 fev. 2018.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Flusser

“O problema que pretendo expor é certamente vivenciado por todos cuja meta é escrever sobre um tema ‘erudito’. É este: devo formular meus pensamentos em estilo acadêmico (isto é, despersonalizado) ou devo recorrer a um estilo vivo (isto é, meu)? A decisão tomada afetará profundamente o trabalho a ser feito. Não é uma decisão que diz respeito à forma apenas. Diz respeito igualmente ao conteúdo. Não há um pensamento único articulável em duas formas. Duas sentenças diferentes são dois pensamentos diferentes [...] O estilo acadêmico é um caso especial de estilo. Reúne honestidade intelectual com desonestidade existencial, já que quem a ele recorre empenha o intelecto e tira o corpo. Caracteristicamente evita o uso do pronome ‘eu’ pelo bombástico (embora aparentemente modesto) ‘nós’, ou pelo ‘se’, que não compromete”