sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Homenagem de Claire Atherton a Chantal Akerman

Homenagem de Claire Atherton a Chantal Akerman. Texto retirado da exposição Chantal Akerman, Tempo Expandido, no Centro Cultural Oi Futuro, em janeiro de 2019.

Texto escrito e lido por Claire Atherton durante a homenagem a Chantal Akerman na Cinémathèque Française, em 16 de novembro de 2015, antes da estréia de Não é um filme caseiro [No Home Movie]

Sempre imaginei a estréia de Não é um filme caseiro. Mas nunca assim… Quero lhes contar sobre Chantal. Tudo que ela me deu, tudo que me ensinou, tudo que compartilhamos. Dizer como ela era: cheia de vida, inteligente, surpreendente e divertida também… Costumam dizer que Chantal tinha princípios estéticos. Bem, acredito que princípios nos protegem, e Chantal não se protegia. Ela confiava no acontecimento, sabia acolher o acaso. Estou pensando em uma história que ilustra sua forma de trabalhar. Durante a produção de A loucura de Almayer [La folie Almayer, 2011], ela precisava de um porto. A assistente perguntou se ela queria um porto grande ou pequeno. Ela respondeu, "um porto grande". Então, mais tarde, perguntaram se ela tinha certeza de que queria um porto grande, porque talvez um pequeno fosse mais tranqüilo. Eu me lembro que estávamos andando na rua, e Chantal estava ao telefone. Ela parou, bateu os pés e disse: "Eu quero um porto grande, foi o que eu disse, não me peça para explicar o porquê". Ela não queria justificar seu gesto, mas acolhê-lo, transformá-lo e quem sabe depois entendê-lo. Chantal era muito livre e intuitiva, às vezes provocativa. Não tinha proibições. Não dizia "temos que filmar assim, enquadrar desse jeito, não pode fazer assim, não pode fazer assado". Suas escolhas vinhas de dentro. Ela era guiada pelo que sentia. Tinha mais uma relação física que cerebral com a imagem, com as cores, com os sons, com o ritmo. Ao editar, nunca a ouvi dizer: "Eu tenho uma ideia". Ela dizia: "Eu ouvi isso", ou "pensei nisso", ou "quero isso", ou "estou obcecada com isso". Mas nunca: "Eu tenho uma ideia".

Quando estava prestes a fazer um documentário não gostava de explicar o que ia fazer. Se explicasse, não teria mais o desejo de realizá-lo. Gostava de ir para a locação e ser como uma chapa fotossensível, uma esponja. Não queria limitar o filme a um projeto, mas permitir que ele viesse até ela e se deixar levar pelo material. Se as imagens de Chantal são tão profundas e marcantes, se vão além daquilo que mostram, é porque não estão confinadas a intenções, mas sim carregadas de todas as preocupações e obsessões que a habitavam. Essa maneira de trabalhar, de "descobrir fazendo" era ainda mais forte quando criava instalações. Em relação a um projeto de instalação desses, Chantal escreveu: "Eu tinha dito muitas coisas sobre a instalação que se seguiu a D'Est (From the East, 1993) antes de realizá-la e entendo que, mais que filmes, instalações não podem ser descritas de antemão. Elas vão nascendo pouco a pouco, por intermédio da própria obra. Aqui, também, não direi nada, exceto pela necessidade de fragmentação, porque isso demonstra bem que não podemos mostrar tudo de um mundo". Durante a edição de D'Est, sentimos que os longos travellings nos rostos de pessoas esperando, as imagens das pessoas andando faziam alusão a outras pessoas esperando ou caminhando, a outras filas, a outras histórias dentro da história, mas não conversamos sobre isso. Foi somente um ano depois, quando estávamos montando a instalação D'Est au bord de la fiction (From the East: Bordering on Fiction, 1995) que Chantal acrescentou um texto sobre os ecos dessas imagens. Vou ler para vocês as palavras do final do texto da 25a. tela:

Ontem, hoje e amanhã, houve, haverá, há, neste exato momento, pessoas às quais a história (que nem sequer leva mais o H maiúsculo), às quais a história atingiu.

Pessoas esperando, aglutinadas, para ser mortas, para apanhar ou morrer de fome, ou que andam sem saber para onde estão indo, em grupos ou sozinhas. Não há nada a fazer. é obsessivo, e eu estou obcecada. Apesar do violoncelo, apesar do cinema. Quando o filme terminou, eu disse a mim mesma: "Então, era disso que se tratava, novamente".

Chantal gostava de planos frontais. Não se tratava de uma decisão formal, mas um gosto, quase uma necessidade. O eixo frontal não descreve, não designa, mas cria um espaço de percepção e reflexão. Também trabalhávamos esse espaço durante a edição. é um espaço deixado para os espectadores, de modo que possam experimentar, sentir e buscar. Chantal insistia que os espectadores fizessem sua parte do trabalho. Ela dizia que queria que as pessoas sentissem a passagem do tempo em seus filmes. Quando alguém dizia, "ah, eu acabei de ver um ótimo filme, nem percebi o tempo passar", ela não considerava isso um elogia. Achava que o tempo do espectador havia sido roubado. Durante a edição, nunca dizíamos: "aqui a gente precisa de um plano longo". Fazíamos isso intuitivamente e entendíamos, mais tarde, o porquê. é como se os próprios planos impusessem sua duração. Chantal gostava de contar sobre como íamos para a mesa exatamente ao mesmo tempo, indicando que era hora de cortar o plano. Víamos as mesmas coisas. Lembro de uma vez, depois de assistir a uma exibição de um trabalho em andamento, uma de nós disse que um determinado travelling estava longo demais, e outra, que estava curto demais. Chantal conclui: "nós concordamos, isso significa que há um problema!".

A partir do momento em que o filme passava a existir, ele rejeitava certas cenas, então não hesitávamos em subtrair ou encurtar. Se o filme recusasse um plano, ainda que bonito, não insistíamos. Muitas vezes, isso dava força ao que se seguia e, então, o filme ganhava com isso. Costumávamos dizer que a edição é um jogo de "vitórias perdedoras". Cada filme, cada instalação era como a primeira vez. Não tínhamos regras, medos ou barreiras, cada vez que entrávamos em uma nova aventura sensorial e intelectual. Nossas trocas eram muito simples. Dizíamos poucas palavras, como se muitas palavras pudessem arruinar alguma coisa. Costumávamos dizer, "é lindo" ou "é forte". Havia algumas palavras que gostávamos; ela dizia que tínhamos que ser drásticas, não fazer concessões. Também dizíamos que tínhamos que ir direto ao ponto. As vezes, eu dizia para ela: "temos que complexificar". Ela gostava dessa palavra. Dizia: "Isso, complexifique um pouco". Isso quando sentíamos que havia algo muito claro, linear demais. Complexificar não era complicar, era adicionar pesos e contrapesos, para moldar a tensão. Chantal não buscava verossimilhança ou realismo. Não tinha medo de anacronismos. Odiava o naturalismo. Nunca tentou copiar a realidade ou representá-la; ela a transformava. Em seus filmes, suas instalações, o presente, o visível dialogavam com o invisível, o subterrâneo. Ela gostava de citar [Edmond] Jabès: "toda interrogação está ligada ao olhar". Ela dizia que não sabia se era verdade, mas que isso a tocava. Chantal era alérgica ao psicologismo. O psicologismo é a explicação psicológica da ação e dos sentimentos. O cinema de Chantal nunca explica, ele nos questiona e nos confronta com nós mesmos. Por isso é tão poderoso e vivo.

Para Chantal, tudo era possível. Ela não queria se limitar a um gênero específico. Nunca quis fazer cinema elitista ou confidencial. Quando fez Um divã em Nova York [Un divã à New York, 1996], esperava fazer um filme comercial que todo mundo fosse ver. A propósito, ela sempre quis que todo mundo fosse ver seus filmes. Quando comecei a editar Um divã, Chantal ainda estava filmando. Fiquei surpresa com a quantidade de tomadas que havia por plano. Não estava acostumada a isso com Chantal; geralmente, quando ela achava que a tomada estava boa, passava para outra cena. Ao retornar, ela me explicou o porquê. Disse que havia tanto em jogo no filme, em termos financeiros, que pediram para ela fazer muitas tomadas "para se cobrirem". E ela me disse: "não se trata mais de se cobrir, virou uma verdadeira pilha de edredões!! E eu estou sufocando sob eles!" Sim, Chantal era engraçada. Nós nos esquecemos disso às vezes. Engraçada e livre. Incomum. Quando estávamos editando Sud, 1999, nós o fazíamos à tarde e, pela manhã, cada uma ia cuidar de suas coisas. Um dia eu apareci e ela disse: "o que você fez pela manhã?" Andava fazendo muito esse tipo de pergunta que joga conversa fora: o que você fez? O que você comeu…E eu disse: "Fiz umas cortinas". E elas respondeu> "Você fez cortinas sozinha? Isso me impressiona mais que se você tivesse recebido o Oscar de melhor montagem!" Para falar de Não é um filme caseiro, acredito que as palavras mais relevantes sejam aquelas escritas pela própria Chantal, alguns meses após a edição estar completa. Foi no outono de 2014.

Faz anos que eu comecei a filmar por toda parte, assim que pressentia uma cena. Sem um propósito, mas com a sensação de que um dia essas imagens comporiam um filme ou uma instalação. Eu me deixava levar, pelo desejo e pelo instinto. Sem roteiro, sem um projeto consciente. Dessas imagens nasceram três instalações que foram exibidas por toda parte. Nesta primavera, junto com Claire Atherton e Clemence Carré, reuni umas vinte horas de imagens e sons, ainda sem saber para onde estava indo. E começamos a esculpir o material. Essas vinte horas tornaram-se oito, depois seis e, depois de um certo tempo, duas. E então vimos… vimos um filme, e eu disse a mim mesma: é claro que é esse filme que eu queria fazer. Sem admitir para mim mesma. E, como se diz, o fio condutor desse filme é uma personagem, uma mulher nascida na Polônia, que chega à Bélgica em 1938, fugindo dos pogroms e do horror. Essa mulher é minha mãe. Dentro e apenas dentro de seu apartamento em Bruxelas.

A editora de cinema Claire Atherton começou a trabalhar com Chantal Akerman em 1984 em Letters Home, que desencadeou uma longa parceria em filmes de ficção, documentários e instalações.

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