quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Corpo_Cidade

querida E.,

obrigada pelo convite para assistir ao Corpo_Cidade. vim acompanhando o seu processo ao longo do último ano, e, estar lá, foi presenciar um pouco de nossas conversas. os desejos, a convivência, mas tudo em um nível agora mais concreto. ontem eu vi você camuflada de cidade. também estavam lá todas as durezas e doçuras que são paulo permite. deixo abaixo minhas impressões sobre ontem.

parte I - solo você estava parada na praça e eu pensei o porquê do seu olhar para o horizonte. era um olhar que via, ou que se fingia alheio à realidade? a praça transmite um sentido de segurança. as pessoas caminham mais devagar do que nos arredores. prefiro pensar que são as árvores e as sombras e os paralelepípedos. seguir você me fez pensar que eu era um tipo de anjo, que vela e observa. nunca interfere, apesar de saber que minha presença era sentida. entendi que é maravilhoso se desprender das câmeras, experienciar antes de qualquer coisa. observá-la sentada, como pedinte de amuletos: o código de estar sentada - passividade e algo que as pessoas aprendem em cidades grandes. ignorar para continuar o caminho sem interferências. como se torna algo difícil tirar a camada de objetividade da vida e ouvir um pouco o outro. o seu olhar era brando.

parte II - coletivo. a apreensão inicial da loja, na rua guarani, 63, me fez pensar se os vendedores eram atores. o casaco de um deles era incomum para o calor que fazia lá fora. caminhei até em frente da oswald de andrade. estavam todos parados, como se congelados por um momento. me chamou a atenção a moça estática, com a mochila aberta em um movimento de guardar o celular. o caminhar (im)perceptível não era visto pelos passantes. alguns se detiveram curiosos.

das grandes potências do espetáculo - a contravenção de parar o trânsito. tensão para quem vê e sente como o tempo de abrir e fechar o semáforo é outro. também no posto de gasolina desativado. a beleza de ocupar o espaço e resistir. na minha percepção, as máscaras (e os códigos-máscaras) e os beijos nas faixas de pedestres poderiam ter sido mais sutis. os corpos de cada um já são significativos o suficiente.

diante disso tudo, você chegou com a caixa de carne crua. a interferência de um senhor, indignado, me fizeram pensar em duas facetas da ação. o incômodo a ponto de ele parar a viatura da polícia (sob o pretexto, para mim engraçado, que você estava sujando a rua) e algumas pessoas que começaram a vaiar a atitude do homem. o apoio e a cumplicidade de quem via. foi bonito. e tenso. seu olhar, quando chegou, era algo próximo de um sentimento de urgência.

na praça, tudo tomou outros ares. os corpos distribuídos na praça, ocupando o espaço. logo a frente, um ator filmava uma "pegadinha". presenciei a encenação da produtora chamar uma mulher e pedir para ela dar um grito "histérico". a realidade maquiada da televisão. a diferença clara do espetáculo e a poesia no mesmo lugar da ação sensacionalista.

entramos todos no metrô e desde então minhas pernas começaram a cansar. talvez pelo calor ou pela tensão do inesperado. pensei que o espetáculo, apesar da força, não era muito solidário a possíveis fragilidades do espectador. a parte em que o metrô abre e vocês acolhem os colegas foi repentina e brusca - um respiro diante a paisagem dos dias cotidianos.

no caminho da estação armênia, saltei para o meu destino. deixei vocês e a continuidade do espetáculo. de alguma forma todo o sentido da peça reverberavam em algumas reflexões. minha cabeça pululava de questões diante do que havia visto. pensei que estar na cidade é estar sujeito à: câmeras, polícia, insultos, incompreensão, "pegadinhas", mas também estar em contato com raros momentos de beleza possíveis somente dentro do caos cotidiano. a dialética da vida. possível somente pelos contrastes. esse respiro, claramente exposto na proposta, para mim foi permeado de sensações. do sorvete e bolinho que comia enquanto observava vocês pelas ruas, até a fila da catraca que vocês fizeram para entrar no metrô. passar novamente por lá, vai ser resgatar essa memória e ver a cidade com mais carinho.

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